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A Uberização das relações de trabalho

Recente nota técnica do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) mostra que o aplicativo Uber criou nova demanda por seus serviços. Consumidores que não usavam táxi anteriormente passaram a utilizar a plataforma devido ao baixo custo e fácil acesso. Motoristas de aplicativo buscam e levam passageiros a qualquer lugar, incluindo as periferias.

Os aplicativos Ifood, Rappi e Uber Eats fazem o serviço de entrega de milhares de restaurantes no Brasil. De forma extremamente ágil, o consumidor possui na tela de seu smartphone todo o cardápio, detalhes dos pratos e preços. Pode escolher tudo com total autonomia, sem precisar ocupar linhas telefônicas, além de cupons de desconto, que são disponibilizados quase que diariamente.

Por outro lado, para atender tamanha demanda, trabalhadores aceitam atuar nesses aplicativos de forma precária, sem registro algum. O medo de continuar desempregado é o que muitas vezes impulsiona as pessoas a prestarem serviços às startups.

Outro ponto relevante sobre o trabalho sem vínculos empregatícios e sem direitos trabalhistas é o limbo em que este trabalhador se situa. Neste caso, usemos o exemplo dos motoboys de aplicativo. Ele não é empregado ou contratado nem pela empresa intermediadora (o aplicativo), nem pelo restaurante para o qual está fazendo a entrega, tampouco pelo usuário que pediu a comida. Se alugar uma moto ou uma bicicleta, menos ainda poderá recorrer a qualquer uma das empresas. Com o uso apenas de capacete na maioria dos casos, se sofrer algum acidente durante uma corrida, restará sem opções para recorrer.

Um alento no tema foi o acordo fechado em julho entre a prefeitura de São Paulo e as empresas Ifood e Loggi. O trato visa aumentar a segurança dos motociclistas e diminuir o número de acidentes. Um dos compromissos das empresas refere-se a convênios para os motociclistas em cursos de direção defensiva e também a realização de campanhas de conscientização para a segurança. Além, foi exigida a extinção da premiação para aqueles que fizessem mais entregas em menos tempo, prática que, segundo especialistas em segurança viária, incentivaria a condução perigosa. As empresas Rappi e Uber Eats não aceitaram aderir.

Neste ponto, chegamos no atual Brasil. Segundo pesquisa de abril de 2019 do IBGE (instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), cerca de 3,8 milhões de pessoas trabalham de modo informal, prestando serviços a aplicativos e tendo nas plataformas online a principal fonte de renda. Pela primeira vez na história do país, no rol de atividades à margem do mercado de trabalho estão inclusas a classe média e pessoas com formação superior.

No combo das reformas de Michel Temer e Jair Bolsonaro - trabalhista em 2017 e da previdência em 2019 – o trabalhador tem menos proteção legal, menos direitos, maior jornada de trabalho, mais anos de contribuição e aposentadorias ainda menores. As novas relações de trabalho estão cada vez mais precárias e hoje, apoiados nos intermediadores tecnológicos entre oferta de serviços e preços baixos, vivemos sob o novo conceito de uberização das relações de trabalho.

Além disso, o discurso que incentiva a busca pelo desejado status de “chefe de si mesmo” tem se tornado cada vez mais comum. Hoje, há um certo consenso de que o melhor é não prestar contas a qualquer patrão. Infelizmente para o trabalhador, em momento de grande crise econômica de países subdesenvolvidos da América Latina que experimentaram algum desenvolvimento nas últimas décadas. Já para o 1% da população mundial que detém a maior parte da riqueza esta visão dos fatos é positiva, pois são eles os donos das grandes empresas, multinacionais e, mais atualmente, das startups.

Com o trabalhador convencido de que é melhor trabalhar para si mesmo e de que os estados pouco fazem além de cobrar impostos com baixo retorno, as empresas privadas seguem afirmando que são capazes de melhor administração, maior transparência e, portanto, melhores serviços às populações.

Segundo Euzébio Jorge Siqueira de Souza, Economista do Centro de Estudos e Memória da Juventude, em entrevista ao programa Bom Para Todos, da TVT:

“Quanto mais as pessoas estiverem desesperadas, mais dispostas elas estarão a vender e a entregar a sua força de trabalho por qualquer quantia”.

Dentro do neoliberalismo, seguindo o pensamento da meritocracia, basta esforço e dedicação para que se receba o que merece. Porém, motoristas e motociclistas de aplicativo possuem longas jornadas de trabalho de 10 a 12 horas por dia, alguns até 18 horas por dia, 6 a 7 dias por semana, para ganhar cerca de no máximo R$ 3.000,00 líquidos por mês. Subtraindo aí os gastos com gasolina, alimentação, manutenção, multas e eventuais prejuízos com assaltos.

O modelo de uberização e informalidade é muito mais benéfico ao empregador. No modelo formal de trabalho, a empresa assina a carteira do seu funcionário e precisa destinar uma parte à previdência, além de ter a obrigação de garantir direitos aos seus funcionários como plano de saúde e auxílios em alimentação e transporte.

Este trabalhador terá garantido seu salário mesmo que não trabalhe em casos de licença por maternidade e licenças por problemas de saúde. Dentro de seus direitos, férias remuneradas, um décimo terceiro salário, pagamento de horas extras, adicional noturno ou por insalubridade e, o mais importante, direito à aposentadoria por anos de trabalho. Em contrapartida, deve trabalhar nas horas combinadas, zelar pela imagem da empresa, justificar faltas ou atrasos. Se demitido sem justa causa, tem direito ao seguro desemprego.

Mesmo com a reforma da previdência, os benefícios de um trabalho formal sobrepõem o modelo informal, em que não há legislações rígidas que apontem o quanto o empregador deve pagar. Em aplicativos, são algoritmos que determinam os valores dos serviços prestados. Em média, há um valor mínimo de R$7,00 e um adicional de R$1,00 por KM rodado.

O aposentado Lucio Dias faz o serviço de motorista para complementar a renda e abater dívidas de sua antiga empresa. Em uma viagem com nossa reportagem, contou sobre o dia a dia no volante e as dificuldades para fechar as contas, mesmo com os turnos de 12 horas todos os dias. Conforme revela, cerca de metade dos ganhos são para cobrir as despesas do trabalho. Em suas palavras, "quase pago para trabalhar".

Em outros modelos de trabalho informal mais tradicionais, quem contrata tem a liberdade de determinar qual valor irá pagar a um freelancer. Sem vínculos empregatícios, não há leis trabalhistas, recurso ou alguma representação de classe (via sindicatos). Nesta forma de trabalho, todas as despesas recorrentes da função são por conta do prestador de serviços.

Completa Euzébio Jorge Siqueira de Souza, em entrevista no programa Bom Para Todos:

“O que acontece é que vivemos um processo onde os avanços tecnológicos permitiram outro tipo de exploração do trabalho”.

Para ele, este modelo econômico e de mercado de trabalho gera uma grande polarização dos trabalhadores, com uma enorme parte da população fadada a viver sempre num patamar mínimo. O indivíduo desenvolve várias atividades para compor a sua renda e acaba não se especializando, o que impossibilita principalmente aos jovens que construam uma trajetória profissional, onde o percurso natural era o de começar ganhando pouco e ao longo do tempo, com as experiências acumuladas, fosse ampliando suas possibilidades e ganhos. No universo das atividades para complementar renda, a especialização ou a ausência dela pouco interfere no destino dos trabalhadores.

Aspectos Econômicos

No sistema econômico fala-se que em dez anos, por volta de 2030, metade das profissões atuais irão desaparecer, segundo um estudo da PWC (PricewaterhouseCoopers). Isto implica que a forma de se trabalhar e produzir está mudando drasticamente. Robôs, inteligência artificial, machine learning são temas que estão na pauta do dia. Para citar tecnologias que visam exercer funções até então feitas pelas pessoas. Esta tendência é inevitável e com o passar dos anos vamos assistir às “máquinas” fazendo o que as pessoas faziam até então, ao passo que novos trabalhos também irão surgir para que os humanos executem.

“Novas formas de trabalho vêm sendo criadas não só em substituição às funções exercidas por novas tecnologias, mas também como alternativa ao desemprego. É a chamada economia colaborativa, em que de maneira informal as pessoas conectam-se e compartilham necessidades”, afirma Marco Antônio Ferreira Couto, coordenador e docente da FIA (Fundação Instituto de Administração).

Segundo dados divulgados pela Revista Exame, em abril de 2019, o número de motoristas cadastrados na Uber no Brasil era de 600 mil, em mais de 100 cidades. No estudo de Cramer e Krueger (2016), os motoristas de Uber são mais produtivos do que os de táxi, tanto quando se mede o tempo ocioso dos motoristas, quanto quando se medem os quilômetros dirigidos por dia. Portanto, esses aplicativos podem ser ferramentas importantes para o aumento da produtividade do segmento.

Segundo Couto, a Uber trouxe uma solução eficiente e de baixo custo para o problema da mobilidade urbana. Com valor de mercado estimado em US$ 60 bilhões em apenas sete anos de existência, a empresa vale hoje mais do que gigantes como a Honda e se iguala à Time Warner, conglomerado de produção cinematográfica dos Estados Unidos.

De acordo com o SEBRAE, o iFood, uma das mais inovadoras foodtechs do mundo e líder em delivery online de comida na América Latina, tem 18 milhões de pedidos mensais. Há oito anos no mercado, a empresa de origem brasileira está presente também no México e na Colômbia. Atua junto aos parceiros com iniciativas que reúnem inteligência de negócio e soluções de gestão para os mais de 80 mil restaurantes cadastrados em 500 cidades em todo o Brasil. O iFood
conta com importantes investidores, como a Movile – líder global em marketplaces móveis – e a Just Eat – uma das maiores empresas de pedidos online do mundo.

Neste contexto que movimenta grandes cifras, é urgente que haja pressão para que os governos imponham regulamentações para além da taxação dos lucros das novas gigantes. Principalmente, são mais que necessários limites na exploração dos trabalhadores.